Cervejas “Duplo Malte”: O Que é Isso?

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

Saudações, nobres cervejeiros!

Hoje, vou discorrer acerca de um tema que não há uma resposta de consenso: o que é uma cerveja duplo malte?

Confesso que eu realmente não sei dizer, ou, não sei exatamente o que é antes sem saber de qual cerveja se trata.

Isso porque o termo, duplo malte, por si só, é enganoso e não quer dizer muita coisa. Por duplo malte existe uma polissemia ínsita que não capacita ninguém a assegurar de que tipo de cerveja se trata, ou qual processo produtivo ao qual a cerveja foi submetido.

Decerto, por duplo malte sabemos pouco sobre aquela cerveja, sabemos muito pouco até mesmo sobre os maltes. De modo que, o termo acaba sendo mais uma jogada de marketing, como também é usado o termo “puro malte”.

Ainda que uma cerveja duplo malte não seja necessariamente também uma puro malte, a maioria das publicidades levam a crer que se trata de uma evolução do estilo. Isto é, como se ser puro malte fosse, de fato, um estilo, quando na verdade não é bem isso que o termo significa na prática.

São dois tipos de malte utilizados na cerveja? São duas vezes a carga maltada de uma cerveja de base quando se tem uma duplo malte? Quanto mais maltes melhor é a cerveja? Duplo malte é uma evolução do puro malte? Duplo malte é sinônimo de qualidade?

Então, vamos tentar destrinchar um pouco o que as cervejarias querem dizer por duplo malte e como o consumidor pode, com o base no conhecimento cervejeiro, poder julgar se vale a pena escolher por uma cerveja que assim se enquadra.

E aí? Vamos beber uma Duplo Malte?

A (falsa) contraposição de sabor e leveza

Existe um certo posicionamento mítico sobre as cervejas no senso comum que coloca em posições antagônicas o sabor (ou melhor dizendo, a intensidade do sabor) e a leveza (ou a drinkability da cerveja).

Para melhor compreender esse falso antagonismo e de onde vem a necessidade de colocar o duplo malte na jogada de marketing é de grande importância aprofundar um pouco mais a discussão. Há a falsa impressão, generalizada pelas cervejas de massa, que se uma cerveja é forte ela tende a ser menos consumida.

O conceito de uma cerveja forte, para o senso comum, é bastante fluido. Digo que ele é dotado de uma grande elasticidade porque normalmente se coloca no mesmo “balaio” as cervejas escuras, as cervejas mais “encorpadas” (que também é algo pouco criterioso de se dizer sobre as cervejas de massa), as cervejas mais amargas…

Enfim, qualquer cerveja que destoe do padrão amarelo-palha para ser servida estupidamente gelada. Dessa maneira, se uma cerveja é mais intensa no sabor ela tende a perder a mágica da leveza. E, por isso, como diria o Gusttavo Lima (vulgo, “Imperador”), não fica um dia lindo para se beber 48 cervejas.

Por causa dessa contraposição forçada, já que uma cerveja pode ser escura e leve, ou amarga e com alta drinkability, tem-se a falsa noção de que uma cerveja com menos sabor tende a ser obrigatoriamente mais leve. Sendo mais leve, pode-se beber excessivamente mais.

O duplo malte e o reforço no sabor

A maioria das cerveja que se intitulam duplo malte se coloca dessa forma para, ou se contrapor às puro malte, ou para delas serem uma continuidade evolutiva. Em termos práticos, só serve como uma marketing, seja para vender mais ou para serem mais caras.

A fachada técnica que elas tentam vender é que: é duplo malte porque usam dois tipos de malte (no caso da Duplo Malte mais famosa, a Brahma, são os maltes Pilsen e Munich). Contudo, essa informação, por si só, não é um sinônimo de qualidade, nem uma representação fática de que a cerveja é mais saborosa.

A qualidade e o sabor serão diretamente influenciados pelas técnicas produtivas e pelos insumos utilizados, não obrigatoriamente pela quantidade de maltes diferentes que são utilizados. Até porque podem estar sendo utilizados tipos de maltes equivocados para o estilo cervejeiro proposto.

Derradeiramente, enfileirar quantidades de maltes diversos não se traduz em uma cerveja melhor, mais saborosa ou de uma qualidade mais representativa. Como a própria diversidade quantitativa expressa, isso quer dizer apenas que ela tem dois maltes diferentes em sua composição.

Não representa que por isso ela terá mais sabor, tal elemento constitutivo, aliás, vai depender muito mais da quantidade de carga de maltes utilizados do que de sua variedade. Fato esse que não costuma, aliás, nunca é sequer mencionado, no momento em que a publicidade cervejeira é divulgada.

A duplicidade de maltes mencionadas tem uma função, igualmente, dúplice. Já que um dos maltes tende a conferir corpo e açúcares fermentáveis para a produção, ao passo que o outro irá provisionar mais cor e aroma à cerveja.

Saliente-se que essa é a perspectiva genérica de produção, claro que ela tende a variar em função dos maltes efetivamente utilizados e de como a sua combinação pode casar (ou não) para o estilo cervejeiro proposto.

Duplo malte e a carga maltada

Para quem tem o mínimo de noção matemática, fica bastante claro que o termo “duplo malte” é deveras enganoso do ponto de vista quantitativo. Se uma cerveja quer se diferenciar por utilizar tipos diferentes de malte, o mais correto, gramatical, lógica e matematicamente seria dizer: cerveja de dois maltes.

Informar ao consumidor que a cerveja leva dois maltes, de modo claro e direto, talvez não tenha nenhuma repercussão imediata de marketing, tampouco de incremento de vendas e de publicidade. Talvez seja por isso que ela não seja, de fato utilizada.

Já o termo corrente duplo malte representa a falsa noção de que há uma carga duplamente maltada na cerveja, em termos de quantidade de insumos utilizados. Algo que é flagrantemente equivocado, ao menos na maioria das cervejas que se valem do termo em questão como fonte de dispersão marqueteira.

Contudo, para isso, seria necessário que a cervejaria produzisse duas cervejas diferentes, uma de base e outra duplamente maltada (com duas vezes a carga de malte), como só acontece quando se trata de uma IPA e uma Double (ou Triple) IPA, nas quais o elemento matemático significa multiplicação e não soma (Double = 2x, Triple = 3x e assim sucessivamente). Tal qual se aprende lá na terceira série do ensino fundamental (ou quarto ano, sou antigo)…

A confusão relatada fica muito mais evidenciada quando temos o conhecimento de que é muito comum no universo cervejeiro e na cultura cervejeira artesanal se ter cervejas com dois, três, quatro ou cinco tipos de maltes.

Nem por isso é comum se ver a nomenclatura “triplo malte”, “penta malte” ou “hexa malte”. Talvez o hexa venha esse ano, mas certamente não na forma maltada como haveria de se pressupor com base em alguma campanha cervejeira que enunciasse uma cerveja “hexa malte”.

Aliás, depois do fiasco da cerveja com cevada plantada na Granja Comary em 2014, esperem qualquer propaganda mal intencionada e maliciosa para vender cerveja na época da Copa do Mundo…

Apenas para exemplo comparativo, uma IPA comum, sem grande complexidade, pode usar 2, 3 ou até mais tipos de maltes, ou até a mesma quantidade diferente de lúpulos, e nem por isso tais informações servem como grande subsídio publicitário… simplesmente porque é um fato trivial de produção que não é um grande elemento qualitativo por si só.

Puro malte, duplo malte, triplo malte… Haja malte!

O conhecimento da cultura cervejeira e de seus termos mais característicos ajuda o consumidor, e o degustador de forma mais ampla, a identificar quando as cervejarias tentam escamotear certos termos qualitativamente pelo marketing.

Inobstante, como já foi debatido acerca do puro malte (clique aqui para ler mais sobre isso), o norteamento dado ao vocábulo duplo malte vai na mesma esteira: não é um sinônimo de qualidade. Aliás, uma cerveja pode ser duplo malte e não ser puro malte, basta que haja algum adjunto em sua composição, como trigo ou “milho”.

Mas, vamos com calma, isso não quer dizer que você não possa gostar de uma cerveja duplo malte. Existe um abismo entre uma cerveja (objetivamente) boa e uma cerveja que você gosta, podendo ser o caso de ambos os termos coincidirem, ou não.

Assim, é perfeitamente possível que você, caro e estimado leitor, goste de uma cerveja duplo malte, aliás, nem estou dizendo que elas são ruins (ou boas). O ponto de reflexão é que o simples e trivial fato de a cerveja ser duplo malte, ou triplo malte, ou puro malte, não confere a ela nenhum status diferenciado.

Ela apenas foi feita com dois tipos de malte (e não duas vezes a carga maltada), ou com três maltes, ou apenas com cevada maltada, sem adjuntos… e nenhuma dessas especificações é um selo de autenticidade ou qualidade. Apenas informam um pouco mais sobre os insumos (no caso, sobre os maltes) utilizados.

Com efeito, a qualidade deve ser aferida por outros meios, como técnicas produtivas, qualidade dos insumos, sua procedência, suas metodologias de germinação e maltagem, dentre outras especificidades técnicas sobre as quais não seria muito profícuo se aprofundar por ora.

Saideira

Em síntese, é comum se ver a dispersão mercadológica do termo duplo malte. Porém, o texto de hoje tenta nos levar a uma reflexão sobre o seu uso, já que ele, por si só não é uma boa sinalização do que é trazido à cerveja em sua simples colocação de rotulagem.

As perguntas feitas na introdução servem de guia para entender melhor o que é o duplo malte. A conclusão a que chegamos é que o termo em referência não tem, por si só, o condão de estatuir que a cerveja é melhor por ser duplo malte.

Aliás, é bem comum no mundo das cervejas artesanais que se tenha cervejas com dois tipos de malte, ou com duas vezes a carga maltada, ou com três tipos de maltes, ou quatro, ou cinco ou dez.

A quantidade de tipos diferentes de malte, nem a quantidade de sua carga utilizada é capaz de definir se uma cerveja é boa ou não, ou se ela é de uma qualidade superior ou não.

Tais elementos são apenas utilizados para definir o estilo da cerveja produzida, ou simbolizar as técnicas de produção utilizadas. Mas, por si só não garantem qualidade, sabor ou qualquer outro elemento distintivo que a qualifique em um status de superioridade.

Por fim, o uso do termo duplo malte acaba sendo bem similar ao que ocorre com o termo puro malte, ambos possuem uma finalidade muito mais comercial e de marketing do que uma representação qualitativa da cerveja produzida.

É sempre bom ter isso em mente na hora de escolher qual cerveja beber para não se cair em mais uma armadilha meramente mercadológica. Fica a dica!

Recomendação Musical

Ao falar sobre duplo malte à minha mente só vinha a música do grupo italiano de Eurodance chamado Double You. Talvez pelo double/duplo no nome… quem sabe?

Certamente, se você era ao menos criança na década de 90, já escutou alguma música deles alguma vez na vida. Seu estilo peculiar ficou conhecido aqui no Brasil como Freestyle, um subgênero da música eletrônica mais amistosa às rádios.

A recomendação de hoje é uma de suas músicas mais icônicas, Run to Me, a qual você deve ter ouvido bastante em alguma matinê quando era mais jovem!

Então vamos de Duplo Malte e Double You!

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidas da semana

Sergio Vilar
Visão geral da privacidade

Este site usa cookies para que possamos fornecer a melhor experiência de usuário possível. As informações de cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.